Saturday, May 12

Rumo

Encadernado num ninho do meu sangue, espero as viúvas negras, potrefactas, que vêm, por vias de providência, depositar e revolver os seus ovos no doce esconderijo deste sangue rico em nutrientes. E antes do fim do dia, lá vêm elas pelas colinas, num trotear rastejante, numa trovoada de patas arqueadas, vêm cobrir esta pasta, minha carapaça de animal, vêm cobri-la de ponto negros, ao longe, uma cidade de ovos de viúva. E quando acabam, vão-se como vieram, em marcha, trote e passo de valsa, esquencendo e aquecendo a tarde, puxando a noite, vão e deixam para trás a vida que aí vem. E eu nem reparo, nem me apercebo onde estou, não tenho consciência que me baste para isso, num, neste estado latente, adormecido mas ciente, e incognoscível, enrolado na posição fetal que me trouxe ao mundo, e que agora me afasta dele, deixo-me ficar para além da fronteira do acessível, contando os ovos, um para cada estrela, e dizendo a Deus que vestir para logo a noite, e pedindo às formigas que me devoram um pouco de paz, que, por agora, a cortina deve permanecer fechada. A falácia de existência roubou-me de qualquer via possível por onde me possa arrastar, sendo que nem um astro pode emitir energia suficiente para agora me levantar do chão, e além disso o sol há muito que morreu. A terra move-se então, e os lobos, esquecidos da vertigem, aproximam-se demasiado do pico da falésia, e morrem por descuidada falta de atenção. Os seus cadáveres decompõem-se no meu sangue, e eu, vários metros abaixo, calo-me para assitir a tão belo, brutal, ritual. O ritual das bestas. Como é decrépito e revigorante o som da morte! Eis que o orgânico volta à terra, e a mim, o que me foi roubado vou recuperando pela mão mal lavada do destino, esse que anda constantemente a brincar na lama e no pó, sempre revestido de sujidade, mas que nunca se lavou quer em vida ou morte, e que se recusa permanentemente em usar sequer uma réstia de sabonete, um pedacinho de gel...


Nop, não pretendo chegar a lado nenhum com esta divagação, simplesmente, apeteceu-me...

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