Monday, May 7

Conto

Naquele chuvoso dia de Novembro as gotas caíam mais pesadas, as ruas estavam alagadas, o céu deixava passar apenas uma luz escura e húmida. As árvores abanavam-se ao vento, deixando cair algumas velhas e solitárias folhas, cansadas já de um longo viver. Alguns pontos escuros movimentavam-se pelas ruas, agitadamente, desorientadamente. O ar movia-se velozmente, entrando pelas frinchas das portas carunchosas. Eu estava à janela, sentindo o calor húmido a embaciar o vidro. Tentava encontrar algo que me desse vida. Estava num quarto sóbreo, de paredes bejes, pálidas, com um aspecto pouco apelativo. O tecto era branco, sim, recordo-me bem. Faltava-lhe alguma decoração, parecia ser antiquado. Não sei, no entanto, porque estava ali. Por vezes a imagem parece-me enevoada, assim como a atmosfera que pairava na rua. Os sons vinham-me por vezes difusos, confusos. Neste instante lembrei-me dela. Ela, quem? Nem eu sabia bem. Havia visto umas duas ou três fotografias há algum tempo e, como por magia, os seus doces olhos, os seus carnudos lábios - tenros e calorosos -, os seus cabelos ondulados, de tons acastanhados, tinham permanecido comigo. Gostava de dizer o seu nome, pronunciá-lo, mas tinha receio de que fosse dar esperanças a uma ilusão. Nunca ouvira a sua voz - delicada, sonora, suave - talvez. Ela vivia no meio de planícies de tons amarelos, com árvores solitárias em pequenos outeiros, onde raramente a água acariciava os solos, dando toques de aridez a esse ermo. Eu vivia numa confusa urbanização, junto a um rio imundo, onde as descargas da imunda civilização eram deitadas, onde raras vezes via uma árvore, qualquer simples vislumbramento da natureza. Eu nem sequer sabia como era o seu feitio, a sua pessoa. No entanto, eu queria continuar naquele suave estado de dislumbre, em que não sabemos o que sentimos, mas queremos senti-lo. Acabei por cair no sofá, adormeci. Uma poeira intensa levantou-se, olhei em volta, tudo estava imóvel, um pássaro passou velozmente defronte. Olhei para o horizonte - via-se uma linha de árvores no distante fundo, com um céu pálido, mas belo, sobre este magnífico quadro. Uma névoa pairava sobre mim, sendo difícil perceber onde estava. Dei alguns passos em direcção a um velho sobreiro, com uma dura e espetacular cortiça, onde as folhas brilhavam, douradas, à luz do sol de final de tarde. Uma fina areia levantou-se. Senti-me exausto ali, naquele local tão hostil, mas ao mesmo tempo tão familiar. Estava numa colina. Olhando para baixo, vi uma solitária vereda que se dirigia para Este. Era agreste, toda em terra, toda escavacada, desprovida de vida, sem árvores, sem gente. Comecei então a caminhar, lentamente, vagarosamente pela velha estrada, em direcção ao futuro. Uma ligeira brisa começou a rolar por entre os suaves outeiros. O sol punha-se agora, dando nova coloração à paisagem, dando lugar à sua irmã alva e redonda, com pequenas escavações escuras, assemelhadas àquelas que o meu caminho tinha, mas de uma maior beleza, de um maior brilho e harmonia. A noção do tempo, perdera-a já há algum tempo. Fui continuando a lenta viagem, sem saber porquê, onde, como.
Era já noite alta, alguns morcegos pairavam sob a branca luz proveniente do profundo céu, corujas aventuravam-se naquele ermo. Ouvi um pequeno regato, com águas salpicando em rochas ao longo do seu caminho, brilhando e reflectindo todo o esplendor da noite. O rio passava por debaixo de uma vetusta ponte, construída com três arcos romanos. Pareceu-me ver aí uma rapariga, era difícil distinguir a calçada branca do seu vestido. Apenas os seus cabelos negros me deram a garantia de uma figura humana. Abrandei os passos, estranhando aquela presença naquele despovoado local. Senti a sua face virar-se para mim. Eu estava desprotegido, recebendo toda a luz lunar na minha face. A sua figura era harmoniosa, bonita, e - maior dos espantos! - ainda assim, simples. O vento nocturno fazia-lhe ondulações no cabelo - preto como a noite. Saiu-lhe uma terna pergunta dos seus lábios:
-"Quem és tu?"
Não consegui responder-lhe, era uma questão tão difícil, complexa e, ao mesmo tempo, tão árdua de responder! Disse-lhe apenas que me chamava Alexandre. Os seus olhos amêndoa, alegres, ansiosos, esmoreceram por momentos. O anterior silêncio invadiu a ponte. Eu perguntei-lhe como se chamava, ela respondeu. Perguntei-lhe onde estávamos e um pesado silêncio ressurgiu. Foram os meus olhos desta vez a cair em desalento. No entanto, algo de familiar havia naquela bela face, naquele corpo de formas tão atraentes, de deusa encarnada em mulher, com coloração rosada nas bocechas e sorriso único e o seu olhar penetrava em mim de modo inigualável, criando sensações por mim nunca antes vividas. Era familiar. Recordei-me então da fotografia d'Ela, sim, era aquela que tinha visto em fotografia! Fiquei contente por ser ela, era bom estar com ela, sentia-me bem com ela.
A lua estava alta, o tempo -indefinido- corria a passos largos. Ela desceu então umas pequenas escadinhas que davam acesso ao rio. Havia uma rara graciosidade no seu andar, os seus tenros braços pareciam mais belos ainda à luz da noite, os seus olhos possuíam um formoso brilho, os seus seios mouriscos pareciam agora de marfim, os meus olhos procuravam os seus. Sentámo-nos à beira-rio, olhando o universo em redor, procurando respostas obscuras nas estrelas, procurando um repouso aconchegado na erva branda. Algumas árvores não muito longe balanceavam ao vento, dando alguma animação àquela repousada noite. Não me lembro ao certo, mas ficámos a conversar largamente, esperando o nascer do sol, sorrindo um para o outro, encontrando diferenças e coincidências no nosso ser. Era agradável ali estar com ela sem saber as horas, sem saber o dia, o mês ou o ano. Olhei para ela, sorri, afaguei-lhe a face e, dando-lhe a mão, adormecemos num sono profundo, esquecido e eterno.

2 comments:

Anonymous said...

suave, doce, profundo, teu

Anonymous said...

já estou nesse lugar maravilhoso.