Tuesday, May 22

Realidade Oculta

Quem és tu, icógnito e incompreensível,
que passas por todos nós,
tens uma pressa atroz,
causas dor angustiável?

És, diria eu, sorrateiro e perverso,
quando queres és cura.
A tristeza perdura
contudo; sinto-me submerso.

Já que a mim me não resta assim viver e sofrer,
pois então que assim viva,
talvez, eu, ele, consiga,
não há nada a temer.

Mas, ó realidade oculta, tu, diz-me já!:
por que tanto atormentas?
P'lo menos assim o tentas!
olha: minha juventude, essa, já ali está.

Sunday, May 13

A Noite Passada - letra e música de Sérgio Godinho

A noite passada acordei com o teu beijo
descias o Douro e eu fui esperar-te ao Tejo
vinhas numa barca que não vi passar
corri pela margem até à beira do mar
até que te vi num castelo de areia
cantavas "sou gaivota e fui sereia"
ri-me de ti "então porque não voas?"
e então tu olhaste
depois sorriste
abriste a janela e voaste

A noite passada fui passear no mar
a viola irmã cuidou de me arrastar
chegado ao mar alto abriu-se em dois o mundo
olhei para baixo dormias lá no fundo
faltou-me o pé senti que me afundava
por entre as algas teu cabelo boiava
a lua cheia escureceu nas águas
e então falámos
e então dissemos
aqui vivemos muitos anos

A noite passada um paredão ruiu
pela fresta aberta o meu peito fugiu
estavas do outro lado a tricotar janelas
vias-me em segredo ao debruçar-te nelas
cheguei-me a ti disse baixinho "olá",
toquei-te no ombro e a marca ficou lá
o sol inteiro caiu entre os montes
e então olhaste
depois sorriste
disseste "ainda bem que voltaste"

Yann Tiersen - Comptine d’un autre été L’après midi



Da banda sonora do "Fabuloso Destino de Amelie Poulain". Muito bonita.

Saturday, May 12

Rumo

Encadernado num ninho do meu sangue, espero as viúvas negras, potrefactas, que vêm, por vias de providência, depositar e revolver os seus ovos no doce esconderijo deste sangue rico em nutrientes. E antes do fim do dia, lá vêm elas pelas colinas, num trotear rastejante, numa trovoada de patas arqueadas, vêm cobrir esta pasta, minha carapaça de animal, vêm cobri-la de ponto negros, ao longe, uma cidade de ovos de viúva. E quando acabam, vão-se como vieram, em marcha, trote e passo de valsa, esquencendo e aquecendo a tarde, puxando a noite, vão e deixam para trás a vida que aí vem. E eu nem reparo, nem me apercebo onde estou, não tenho consciência que me baste para isso, num, neste estado latente, adormecido mas ciente, e incognoscível, enrolado na posição fetal que me trouxe ao mundo, e que agora me afasta dele, deixo-me ficar para além da fronteira do acessível, contando os ovos, um para cada estrela, e dizendo a Deus que vestir para logo a noite, e pedindo às formigas que me devoram um pouco de paz, que, por agora, a cortina deve permanecer fechada. A falácia de existência roubou-me de qualquer via possível por onde me possa arrastar, sendo que nem um astro pode emitir energia suficiente para agora me levantar do chão, e além disso o sol há muito que morreu. A terra move-se então, e os lobos, esquecidos da vertigem, aproximam-se demasiado do pico da falésia, e morrem por descuidada falta de atenção. Os seus cadáveres decompõem-se no meu sangue, e eu, vários metros abaixo, calo-me para assitir a tão belo, brutal, ritual. O ritual das bestas. Como é decrépito e revigorante o som da morte! Eis que o orgânico volta à terra, e a mim, o que me foi roubado vou recuperando pela mão mal lavada do destino, esse que anda constantemente a brincar na lama e no pó, sempre revestido de sujidade, mas que nunca se lavou quer em vida ou morte, e que se recusa permanentemente em usar sequer uma réstia de sabonete, um pedacinho de gel...


Nop, não pretendo chegar a lado nenhum com esta divagação, simplesmente, apeteceu-me...

Thursday, May 10

V= x+y

Vivemos num problema de programação linear? É que segundo tenho observado... somos definidos por restrições.
Porque é que a evolução ainda não nos empurrou para um ponto onde nascemos com asas? Já que demos saltos tão notáveis em termos tecnológico-científicos, nos passados séculos, porque é que não desenvolvemos dois membros anteriores revestidos a gordura, e portanto impermeáveis, que nos permitissem saltar do nono andar num dia tempestuoso e procurar abrigo debaixo de qualquer toldo acima das nuvens? Adorava poder acordar todos os dias, passar-me por água - ela, cheia de químicos, continua a ser a última fonte de pureza num raio de quilómetros - , vestir uns panos à pressa e atirar-me de cabeça numa descida de segundos que parece prolongar-se por horas e dias, uma vida que passa diante dos olhos, e na última décima do último segundo possivel, antes de um ponto donde não há retrocesso, estender um manto branco, sedoso, e planar, depois subir e descer, rodar...
Até lá suponho que vá ter de continuar a usar o elevador, uma das salas mais horríveis que o homem conseguiu, até agora, inventar.

Tuesday, May 8

Secção Linguística

Haver

Será correcto dizer - "haverá debates sobre a língua"
ou - "haverão debates sobre a língua"?


Resposta
: O verbo haver, quando utilizado com o sentido de existir, é um verbo impessoal, isto é, empregado apenas na terceira pessoa do singular. Quando empregue com um verbo auxiliar (ex: ter), o auxiliar deverá vir também na 3ª pessoa:
"Tinha de haver debates sobre a língua"
"Há-de haver debates sobre a língua" ; ERRADO: "Hão-de haver debates sobre a língua"



Assim, a forma correcta é : haverá debates sobre a língua



Conjugação do verbo haver no presente do indicativo:
Eu hei
Tu hás
Ele há
Nós havemos
Vós haveis
Eles hão

Secção Linguística


Eu e o Fugas chegámos à conclusão de que um blog como o Incógnito seria incompleto sem uma secção linguística, dedicada ao estudo da língua Portuguesa, lingua mãe de todos nós. Bem sabemos que para muitos esta área é amiúde desprezada. Mas por isso mesmo e, de modo rápido, colocaremos aqui questões interessantes sobre a língua por nós falada. Será -geralmente- publicada todas as terças-feiras. Cumprimentos

Monday, May 7

Conto

Naquele chuvoso dia de Novembro as gotas caíam mais pesadas, as ruas estavam alagadas, o céu deixava passar apenas uma luz escura e húmida. As árvores abanavam-se ao vento, deixando cair algumas velhas e solitárias folhas, cansadas já de um longo viver. Alguns pontos escuros movimentavam-se pelas ruas, agitadamente, desorientadamente. O ar movia-se velozmente, entrando pelas frinchas das portas carunchosas. Eu estava à janela, sentindo o calor húmido a embaciar o vidro. Tentava encontrar algo que me desse vida. Estava num quarto sóbreo, de paredes bejes, pálidas, com um aspecto pouco apelativo. O tecto era branco, sim, recordo-me bem. Faltava-lhe alguma decoração, parecia ser antiquado. Não sei, no entanto, porque estava ali. Por vezes a imagem parece-me enevoada, assim como a atmosfera que pairava na rua. Os sons vinham-me por vezes difusos, confusos. Neste instante lembrei-me dela. Ela, quem? Nem eu sabia bem. Havia visto umas duas ou três fotografias há algum tempo e, como por magia, os seus doces olhos, os seus carnudos lábios - tenros e calorosos -, os seus cabelos ondulados, de tons acastanhados, tinham permanecido comigo. Gostava de dizer o seu nome, pronunciá-lo, mas tinha receio de que fosse dar esperanças a uma ilusão. Nunca ouvira a sua voz - delicada, sonora, suave - talvez. Ela vivia no meio de planícies de tons amarelos, com árvores solitárias em pequenos outeiros, onde raramente a água acariciava os solos, dando toques de aridez a esse ermo. Eu vivia numa confusa urbanização, junto a um rio imundo, onde as descargas da imunda civilização eram deitadas, onde raras vezes via uma árvore, qualquer simples vislumbramento da natureza. Eu nem sequer sabia como era o seu feitio, a sua pessoa. No entanto, eu queria continuar naquele suave estado de dislumbre, em que não sabemos o que sentimos, mas queremos senti-lo. Acabei por cair no sofá, adormeci. Uma poeira intensa levantou-se, olhei em volta, tudo estava imóvel, um pássaro passou velozmente defronte. Olhei para o horizonte - via-se uma linha de árvores no distante fundo, com um céu pálido, mas belo, sobre este magnífico quadro. Uma névoa pairava sobre mim, sendo difícil perceber onde estava. Dei alguns passos em direcção a um velho sobreiro, com uma dura e espetacular cortiça, onde as folhas brilhavam, douradas, à luz do sol de final de tarde. Uma fina areia levantou-se. Senti-me exausto ali, naquele local tão hostil, mas ao mesmo tempo tão familiar. Estava numa colina. Olhando para baixo, vi uma solitária vereda que se dirigia para Este. Era agreste, toda em terra, toda escavacada, desprovida de vida, sem árvores, sem gente. Comecei então a caminhar, lentamente, vagarosamente pela velha estrada, em direcção ao futuro. Uma ligeira brisa começou a rolar por entre os suaves outeiros. O sol punha-se agora, dando nova coloração à paisagem, dando lugar à sua irmã alva e redonda, com pequenas escavações escuras, assemelhadas àquelas que o meu caminho tinha, mas de uma maior beleza, de um maior brilho e harmonia. A noção do tempo, perdera-a já há algum tempo. Fui continuando a lenta viagem, sem saber porquê, onde, como.
Era já noite alta, alguns morcegos pairavam sob a branca luz proveniente do profundo céu, corujas aventuravam-se naquele ermo. Ouvi um pequeno regato, com águas salpicando em rochas ao longo do seu caminho, brilhando e reflectindo todo o esplendor da noite. O rio passava por debaixo de uma vetusta ponte, construída com três arcos romanos. Pareceu-me ver aí uma rapariga, era difícil distinguir a calçada branca do seu vestido. Apenas os seus cabelos negros me deram a garantia de uma figura humana. Abrandei os passos, estranhando aquela presença naquele despovoado local. Senti a sua face virar-se para mim. Eu estava desprotegido, recebendo toda a luz lunar na minha face. A sua figura era harmoniosa, bonita, e - maior dos espantos! - ainda assim, simples. O vento nocturno fazia-lhe ondulações no cabelo - preto como a noite. Saiu-lhe uma terna pergunta dos seus lábios:
-"Quem és tu?"
Não consegui responder-lhe, era uma questão tão difícil, complexa e, ao mesmo tempo, tão árdua de responder! Disse-lhe apenas que me chamava Alexandre. Os seus olhos amêndoa, alegres, ansiosos, esmoreceram por momentos. O anterior silêncio invadiu a ponte. Eu perguntei-lhe como se chamava, ela respondeu. Perguntei-lhe onde estávamos e um pesado silêncio ressurgiu. Foram os meus olhos desta vez a cair em desalento. No entanto, algo de familiar havia naquela bela face, naquele corpo de formas tão atraentes, de deusa encarnada em mulher, com coloração rosada nas bocechas e sorriso único e o seu olhar penetrava em mim de modo inigualável, criando sensações por mim nunca antes vividas. Era familiar. Recordei-me então da fotografia d'Ela, sim, era aquela que tinha visto em fotografia! Fiquei contente por ser ela, era bom estar com ela, sentia-me bem com ela.
A lua estava alta, o tempo -indefinido- corria a passos largos. Ela desceu então umas pequenas escadinhas que davam acesso ao rio. Havia uma rara graciosidade no seu andar, os seus tenros braços pareciam mais belos ainda à luz da noite, os seus olhos possuíam um formoso brilho, os seus seios mouriscos pareciam agora de marfim, os meus olhos procuravam os seus. Sentámo-nos à beira-rio, olhando o universo em redor, procurando respostas obscuras nas estrelas, procurando um repouso aconchegado na erva branda. Algumas árvores não muito longe balanceavam ao vento, dando alguma animação àquela repousada noite. Não me lembro ao certo, mas ficámos a conversar largamente, esperando o nascer do sol, sorrindo um para o outro, encontrando diferenças e coincidências no nosso ser. Era agradável ali estar com ela sem saber as horas, sem saber o dia, o mês ou o ano. Olhei para ela, sorri, afaguei-lhe a face e, dando-lhe a mão, adormecemos num sono profundo, esquecido e eterno.

Friday, May 4

Constatação

Não há arma maior que a linguagem.

Outro só

Que sono tremendo.. Que falta de inspiração, motivação e sentimento, que sono! Mal consigo manter os olhos abertos, tal é a seca que plagueia as terras à minha roda, e apesar de a minha mesa estar sempre cheia, e o vinho não faltar, não me sinto saciado, quero mais! Quero outras coisas, e pergunto-me até que ponto estou disposto a largar tudo o que me prende, e aquilo de que penso precisar, para as alcançar.

Assim, tudo é um fado, tudo é um tango, mas nada se ouve, poucos dançam... Há alguns que simplesmente não querem, outros que não podem, não lhes deixam, e os que dançam, vão dançando, enquanto eu me pergunto qual o círculo em que me hei-de enquadrar, e quais motivos me levam a fazê-lo.

Suponho que motivo nenhum, já que a música o comanda, ainda que a única coisa realmente audível sejam os passos dos que rodam e rodopiam, e aos poucos, encolhido, vou avançando, descontraindo, percorrendo essa pista, fora do ritmo dos que se mexem à minha volta.

Não é o que fazemos todos? E agora? Dançamos? Ficamos parados? Onde está a música? Onde estamos todos?

Pista fora, que morra a ampulheta!

Wednesday, May 2

Poema antigo

Bem, este poema foi mesmo agora encontrado por mim. Já nem sabia que existia. Pelos meus cálculos, deve ser da época em que estava no 9ºano e foi o primeiro dedicado a alguém. Velhos tempos.


Era bela e formosa,
Suave como a água do mar,
Esbelta e vistosa.

Seus lábios eram d'oiro,
Seus olhos, pérolas azuis,
Sua pele, de tom moiro.

Inveja tinha a lua,
E fraco era o sol,
Perante tal beleza crua.

A Vénus superava em tudo,
Era ela uma deusa,
A raínha do mundo.

Música

Música, música, como é impossível resistir-te! Não te adorar choca até os deuses mais temíveis! E desconhecer-te é humanamente inalcansável. Isto porque nasces dentro de cada um de nós. Expressão mental, a tua beleza faz-se sem recurrência ao óptico, que milagre! Tocas o que importa, o cá dentro, mas não te fundes, antes penetras no nosso intímo, pois ninguem nos conhece melhor que tu, tu que vieste de nós, és a expressão do homem, bem, mal, toda a filosofia nasce de um ritmo, uma pauta, um encantamento. Música, o amor que a todos é dado a conhecer.

Tuesday, May 1

Adios Nonio - Astor Piazzolla



Um tango que Piazzolla dedicou ao pai, se não me engano. Este músico compôs inúmeros tangos que se distinguem pela sua originalidade sonora, fruto da incorporação de elementos jazzísticos nas suas peças.